terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Toda a beleza da África


Joburg Ballet, o outro

 sonho de Mandela
 



 PARTE DOIS
Em meio a um descampado, quando acabam as casas baixas e um conjunto de barracos aos quais não se pode passar com indiferença, ergue-se o novo Teatro de Soweto, inaugurado em 2012, com seus volumes de azulejos coloridos. Tem duas salas e abriga todos os grupos de artistas da região: há balé moderno e tradicional. “Tinha de começar de alguma maneira”, diz um funcionário sorridente e orgulhoso do exuberante conteúdo. Diante do teatro há um coliseu aberto para mais de 10.000 pessoas. Tudo está sendo pensado grande, e nesse entrelaçar de sonhos e metas o balé já está inserido. No anfiteatro as marcas do vandalismo, grafitis, um desleixo que parece vir no mesmo pacote que o clima abrasador que oxida depressa as grades na área da plateia.
O Joburg recebe ajuda da prefeitura, da região e de outros órgãos públicos, mas o que o faz viver de verdade são os patrocinadores privados. Em seus salões de ensaio, amplos e ensolarados, a atividade não para nunca: quando a companhia termina de ensaiar, chegam os menorzinhos da escola, e também há aulas para adultos e de aperfeiçoamento para professores. A abundância de escolas privadas não tirou a força das atividades do Joburg. Lentamente a dança se torna popular.
 Lindé Wessels, solista do Joburg Ballet, em um espetáculo para estudantes. / Charlotte Kennedy


A maioria das academias privadas adota o método inglês de balé e, na companhia, ele convive com o ensino das escolas cubana e russa. Há alguns anos o Joburg firmou um convênio com a Escola Nacional de Balé de Havana, e regularmente Cuba envia professores, ensaiadores e bailarinos. “Melhor que nos mandem instrutores de balé do que soldados, como mandaram a Angola”, comenta com ironia um funcionário da administração. Alguns professores cubanos vieram por meio ano e já estão há mais de três: encontraram outra casa. Nem todos pensam da mesma maneira, e há quem deseje que o domínio seja da escola britânica, seus modos e seu estilo, conhecida como Royal Acadeny, uma identificação que compartilha motivos históricos com o fato de que no país se dirige pela esquerda e as receitas incluem torta de rim: os tempos coloniais e seus rastros. Sendo práticos, não há grandes contradições nem abismos nos métodos de ensinar balé, a não ser sutis questões didáticas e plásticas.

Os bailarinos cubanos que viajaram para a África do Sul eram majoritariamente negros e mulatos. Alguns, como também os brasileiros, não tinham sido capazes de encontrar seu lugar nas fileiras da companhia oficial cubana, onde também se fala sutilmente de racismo. Sua presença estimulou a população negra a levar os filhos para estudar balé: não era algo que tinha sido calculado, mas deu resultados. O início foi duro, mas a visibilidade dos artistas da dança nos meios de comunicação pouco a pouco abrandou o ambiente. Ao mesmo tempo se ampliava o repertório tanto clássico como moderno com o entusiasmo que significava poder assistir aos concursos continentais da modalidade. A dança moderna abria caminho aos poucos, ia por sua vez desbravando outra selva de preconceitos, alguns compartilhados.
O primeiro balé oficial estava em Pretória, depois se tornou famoso o da cidade do Cabo e agora chegou a hora de Johanesburgo. Quando se consulta a prestigiada The International Encyclopedia of Dance, de Selma Jeanne Cohen, o item África do Sul tem quase 20 páginas ilustradas. A paixão pela dança sempre esteve ali, “latente ou nos passeios dos domingos”, diz uma professora. Na enciclopédia todas as fotos do balé clássico que aparecem são de artistas brancos; aos negros é reservado o folclore e o surgimento da dança moderna. O balé é sempre mais complexo, seus modos, seu rigor sugerindo empertigamento, seus títulos emblemáticos, a lentidão para obter resultados cênicos.

Desmond Tutu apoiou pessoalmente um projeto de divulgação do balé da Cidade do Cabo que ainda funciona, e Nelson Mandela, ao falar das artes, fazia pé firme na dança. Ambos evocavam a música e a dança como elementos imprescindíveis da identidade cultural e da regeneração do orgulho nacional, do próprio desenvolvimento de qualquer consciência humanística. Agora atravessam a praça com suas mochilas crianças negras que vão à sala de balé, algo impensável até pouco tempo atrás.

Keke Chele e Kitty Phetla, sul-africanos e negros, são os solistas da companhia e um emblema por sua tenacidade, pela maneira com que contornaram as dificuldades ao iniciarem suas careiras. Ambos são muito populares na televisão e na imprensa. Keke Chele se especializou nos papéis de pessoas mais velhas e tira um enorme partido de seu lado cômico; Kitty Phetla faz a versão particular de A Morte do Cisne enfronhada em um tutu escuro, não no branco imaculado que marca a tradição russa. Essa peça se tornou um símbolo de luta e é uma das que o Joburg Ballet carrega como estandarte. Phetla não se cansa de repetir sua mensagem: o balé é nossa vida, é universal, e é preciso apoiá-lo.

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