Joburg Ballet, o outro
sonho de Mandela
PARTE DOIS
Em meio a
um descampado, quando acabam as casas baixas e um conjunto de barracos aos
quais não se pode passar com indiferença, ergue-se o novo Teatro de Soweto,
inaugurado em 2012, com seus volumes de azulejos coloridos. Tem duas salas e
abriga todos os grupos de artistas da região: há balé moderno e tradicional.
“Tinha de começar de alguma maneira”, diz um funcionário sorridente e orgulhoso
do exuberante conteúdo. Diante do teatro há um coliseu aberto para mais de
10.000 pessoas. Tudo está sendo pensado grande, e nesse entrelaçar de sonhos e
metas o balé já está inserido. No anfiteatro as marcas do vandalismo, grafitis,
um desleixo que parece vir no mesmo pacote que o clima abrasador que oxida
depressa as grades na área da plateia.
O Joburg
recebe ajuda da prefeitura, da região e de outros órgãos públicos, mas o que o
faz viver de verdade são os patrocinadores privados. Em seus salões de ensaio,
amplos e ensolarados, a atividade não para nunca: quando a companhia termina de
ensaiar, chegam os menorzinhos da escola, e também há aulas para adultos e de
aperfeiçoamento para professores. A abundância de escolas privadas não tirou a
força das atividades do Joburg. Lentamente a dança se torna popular.
Lindé Wessels, solista do Joburg
Ballet, em um espetáculo para estudantes. / Charlotte
Kennedy
A maioria das academias privadas adota o método inglês de balé e, na
companhia, ele convive com o ensino das escolas cubana e russa. Há alguns anos
o Joburg firmou um convênio com a Escola Nacional de Balé de Havana, e
regularmente Cuba envia professores, ensaiadores e bailarinos. “Melhor que nos
mandem instrutores de balé do que soldados, como mandaram a Angola”, comenta
com ironia um funcionário da administração. Alguns professores cubanos vieram
por meio ano e já estão há mais de três: encontraram outra casa. Nem todos
pensam da mesma maneira, e há quem deseje que o domínio seja da escola
britânica, seus modos e seu estilo, conhecida como Royal Acadeny, uma
identificação que compartilha motivos históricos com o fato de que no país se
dirige pela esquerda e as receitas incluem torta de rim: os tempos coloniais e
seus rastros. Sendo práticos, não há grandes contradições nem abismos nos
métodos de ensinar balé, a não ser sutis questões didáticas e plásticas.
Os
bailarinos cubanos que viajaram para a África do Sul eram majoritariamente
negros e mulatos. Alguns, como também os brasileiros, não tinham sido capazes
de encontrar seu lugar nas fileiras da companhia oficial cubana, onde também se
fala sutilmente de racismo. Sua presença estimulou a população negra a levar os
filhos para estudar balé: não era algo que tinha sido calculado, mas deu
resultados. O início foi duro, mas a visibilidade dos artistas da dança nos
meios de comunicação pouco a pouco abrandou o ambiente. Ao mesmo tempo se
ampliava o repertório tanto clássico como moderno com o entusiasmo que
significava poder assistir aos concursos continentais da modalidade. A dança
moderna abria caminho aos poucos, ia por sua vez desbravando outra selva de
preconceitos, alguns compartilhados.
O primeiro balé oficial estava em Pretória, depois se tornou famoso o da
cidade do Cabo e agora chegou a hora de Johanesburgo. Quando se consulta a
prestigiada The International Encyclopedia of Dance,
de Selma Jeanne Cohen, o item África do Sul tem quase 20 páginas ilustradas. A
paixão pela dança sempre esteve ali, “latente ou nos passeios dos domingos”,
diz uma professora. Na enciclopédia todas as fotos do balé clássico que
aparecem são de artistas brancos; aos negros é reservado o folclore e o
surgimento da dança moderna. O balé é sempre mais complexo, seus modos, seu
rigor sugerindo empertigamento, seus títulos emblemáticos, a lentidão para
obter resultados cênicos.
Desmond
Tutu apoiou pessoalmente um projeto
de divulgação do balé da Cidade do Cabo que ainda funciona, e Nelson
Mandela, ao falar das artes, fazia pé firme
na dança. Ambos evocavam a música e a dança como elementos imprescindíveis da
identidade cultural e da regeneração do orgulho nacional, do próprio
desenvolvimento de qualquer consciência humanística. Agora atravessam a praça
com suas mochilas crianças negras que vão à sala de balé, algo impensável até
pouco tempo atrás.
Keke Chele e Kitty Phetla, sul-africanos e negros, são os solistas da
companhia e um emblema por sua tenacidade, pela maneira com que contornaram as
dificuldades ao iniciarem suas careiras. Ambos são muito populares na televisão
e na imprensa. Keke Chele se especializou nos papéis de pessoas mais velhas e
tira um enorme partido de seu lado cômico; Kitty Phetla faz a versão particular
de A Morte do Cisne enfronhada em um tutu escuro, não
no branco imaculado que marca a tradição russa. Essa peça se tornou um símbolo
de luta e é uma das que o Joburg Ballet carrega como estandarte. Phetla não se
cansa de repetir sua mensagem: o balé é nossa vida, é universal, e é preciso
apoiá-lo.
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