Pacientes
de hospital de custódia estão em presídio comum em São Paulo há um mês
- 10/04/2016 08h10
- São Paulo
Camila
Boehm – Repórter da Agência Brasil
Pacientes do Hospital de Custódia
e Tratamento Psiquiátrico Professor André Teixeira Lima (HCTP I), localizado na
cidade de Franco da Rocha, estão em celas de um presídio comum desde o dia 11
de março. Eles foram transferidos para penitenciária e centro de detenção
provisória na cidade por causa de uma enchente que alagou as instalações do
hospital. Os pacientes permanecem em celas e, apesar de estarem em pavilhões
separados, estão submetidos a condições de presos comuns e não de pacientes
psiquiátricos.
Foram 449 homens transferidos
para a Penitenciária III de Franco da Rocha e 72 mulheres para o centro de
detenção provisória (CDP) da cidade, segundo a Secretaria de Administração
Penitenciária (SAP).
A transferência é criticada por
organizações ligadas à saúde e defesa de direitos humanos.
“Essa situação das pessoas com
transtorno mental em presídio comum é uma grave situação de violação de
direitos humanos”, disse o defensor do Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria
Pública de São Paulo, Patrick Lemos.
Quando uma pessoa infringe a lei
e é diagnosticada, no processo judicial, com algum transtorno psiquiátrico,
poderá ser encaminhada para um hospital de custódia, onde permanecerá até que
não haja mais risco de periculosidade, ou poderá receber acompanhamento
ambulatorial, que é uma forma de tratamento sem necessidade de internação.
Ambos são considerados “medida de segurança” pela Justiça.
O defensor informou que, em razão
da falta de vagas no hospital de custódia de Franco da Rocha, alguns pacientes
já estavam irregularmente em presídios, situação que foi agravada por causa do
alagamento no hospital. “Não foi à toa também que o estado transferiu [os
pacientes] para esses estabelecimentos [prisionais], porque já estão
acostumados com uma situação de total ilegalidade e que agora foi
intensificada”.
“O tratamento de saúde de uma
pessoa é absolutamente incompatível com a prisão. E a lei veda expressamente
que essas pessoas possam ficar na prisão”, disse o defensor. Ele disse que,
enquanto os pacientes estão em um ambiente prisional, não há nada que
determine, nem legalmente nem na sentença do juiz, que eles possam estar
presos.
A Pastoral Carcerária de São
Paulo pediu a interdição do hospital, argumentando que a unidade “está em uma
área que historicamente tem alagamento”. O vice-coordenador da Pastoral,
Marcelo Naves, informou que três grandes enchentes já atingiram a unidade: em
1987, em 2011 e agora em 2016. “A situação dessa unidade vai para além dessa
última enchente. Ela está em um lugar que é de alagamento, portanto a
localização é completamente imprópria para ter pacientes”, disse. A pastoral
afirma que alguns pacientes foram levados também para o CDP de Pinheiros.
Naves alertou que, como alguns
pavilhões dos presídios foram esvaziados e reservados para os pacientes, os
detentos, que antes os ocupavam, foram removidos para outras áreas, “o que
aumentou a superlotação para a população que já estava ali”. Mesmo mantidos em
locais separados, “os pavilhões onde [os pacientes] estão não tem a mínima
condição de atender essas pessoas”.
A transferência dos pacientes é
vista com preocupação pelo psiquiatra forense Guido Palomba, que considera a
situação um retrocesso. “Voltamos para uma época, as primeiras décadas do
século 20, em que não existia lugar adequado, então eles [pacientes] ficavam
junto com os outros. Na Idade Média, os doentes mentais eram internados nos
presídios, junto com prostitutas, doentes venéreos, criminosos, então acho que
é um retrocesso imenso. Eu não sei porque estão tomando essa medida, mas que
isso é muito preocupante é”, avaliou o médico, que faz laudos sobre pacientes
com transtornos psiquiátricos para a Justiça.
De acordo com o presidente do
Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), Mauro Aranha,
alguns detentos com transtornos psiquiátricos, muitas vezes, não passam por uma
avaliação. “Um dos problemas sérios que existem nesse sentido é o problema das
drogas. Às vezes, a pessoa que padece de uma dependência de drogas ou de um uso
nocivo, ele é preso até injustamente, porque não é nem grande nem pequeno
traficante, e sim uma pessoa que é dependente”, disse.
Já a psicóloga e ativista da
Frente Estadual Antimanicomial, Marília Fernandez, considerou a transferência
uma violência. “Quando houve a enchente no dia 11 [de março] os pacientes foram
retirados da unidade de uma forma extremamente violenta. Eles atravessaram um
rio, que [era como] estava Franco da Rocha, todos amarrados uns nos outros e
muitos policiais com espingardas”. Segundo ela, os pacientes, ao serem levados
para unidades desconhecidas por eles e também por passarem pela enchente,
tiveram momentos de stress e foram retirados de seu vínculo, o que agrava muito
seu estado emocional.
“Vai fazer um mês que o estado
não se preocupa com essas pessoas. Fora que retornar essas pessoas para o HCTP
de Franco [da Rocha] é mais um descaso, porque este lugar é insalubre. Já não é
a primeira vez [que há enchente]. Enchente em 2011, enchente em 1987, não é a
primeira vez”, avaliou.
Sobre a transferência dos
pacientes para as penitenciárias comuns e o atendimento médico, a Secretaria de
Administração Penitenciária informou, em nota, que “as unidades para as quais
os pacientes foram transferidos têm todas as condições de saúde e segurança
necessárias para a realização dos atendimentos médico, psicológico e
medicamentoso”. A secretaria acrescentou que "o alojamento é
distribuído de acordo com o tipo de restrição da capacidade psicomotora, sendo
que pacientes com essa restrição ocupam as camas inferiores". Conforme a
secretaria, todas as medidas necessárias para reativação do hospital de
custódia de Franco da Rocha estão sendo tomadas. Não há data definida.
Hospitais de custódia
“Você tem um primeiro problema
que é o próprio hospital de custódia, que tem um caráter asilar, as pessoas
ficam internadas lá em um ambiente que não é adequado para tratamento de saúde.
E, com o alagamento do hospital de custódia, elas vão para um local pior ainda
que é a prisão, que é vedado pela lei, ou seja, a situação é da mais alta
gravidade”, avaliou o defensor Patrick Lemos.
Em 2013, o Cremesp visitou os
três hospitais de custódia do estado, entre eles o de Franco da Rocha. No
relatório sobre as visitas, a entidade aponta falhas no sistema dos hospitais e
constatou que parte dos pacientes “não deveria mais estar nesses hospitais no
momento da fiscalização, alguns estavam com medida de segurança extinta
aguardando vagas em hospital psiquiátrico comum, outros tinham laudos favoráveis
para desinternação condicional, ou já haviam sido indultados”.
Na avaliação do presidente do
conselho, Mauro Aranha, os hospitais de custódia de São Paulo ainda obedecem à
lógica prisional e não a do tratamento de transtornos mentais. “A medida de
segurança com internação corresponde a uma prisão perpétua praticamente”.
Conforme relatório do Cremesp, “a vertente terapêutica e de ressocialização da
medida de segurança parece passar ao largo dessas pessoas”.
Para Aranha, a internação deveria
acabar quando houvesse tratamento, recuperação e ressocialização da pessoa
infratora com transtorno psiquiátrico. No entanto, segundo ele, “como os
hospitais de custódia têm tratamentos sem eficácia, sem atendimento
multidisciplinar adequado, sem projetos de reinserção social, os pacientes –
não sendo tratados – ficam [internados] anos a fio, muito mais do que alguém
que cometeu um delito criminoso”.
Segundo o psiquiatra forense,
Guido Palomba, todo o sistema penitenciário do país, de um modo geral, “está
falido”. “Sejam hospitais de custódia, sejam penitenciárias, sejam casas de
detenção, tem umas que são absolutamente pavorosas. Os hospitais de custódia
não fogem à regra de penúria em que se encontra o sistema penitenciário
brasileiro”, avaliou.
No entanto, na opinião do médico,
o fechamento dos hospitais de custódia não soluciona a questão, pois essas
instituições são necessárias. De acordo com Palomba, as instalações devem ser
melhoradas para o atendimento satisfatório dos pacientes. “O importante é você
melhorar essas condições, como também devem ser melhoradas as condições
penitenciárias em geral. Se estão funcionando mal, deveria ter um incremento do
estado, incremento do governo federal, para sanar essas carências”.
Tratamento dos pacientes
O psiquiatra forense disse que o
ideal seria fazer uma triagem dos pacientes assim que chegam aos hospitais de
custódia, a fim de separar aqueles com quadros agudos, delirantes e
alucinatórios dos que já estão em situação melhor. Além disso, Palomba acredita
que atividades para ocuparem o tempo do paciente ajudam na recuperação.
“O fundamental é você ocupar o
internado, com duas coisas: algo profissionalizante, porque isso também
ressocializa muito. E outra coisa muito importante é o lazer, um lazer
programado. Outra coisa que ajuda muito são as atividades psicopedagógicas,
como, por exemplo, artes e leituras”, disse. “Se você me perguntar: essas casas
de custódia dão isso? Praticamente nada disso”, acrescentou.
Sobre tratamento exclusivamente
ambulatorial, o psiquiatra discorda. “Quando você faz um parecer de verificação
de cessação de periculosidade, o perito obrigatoriamente tem que ter na
consciência dele que, de um lado está o paciente com seus direitos, mas do
outro lado tem uma sociedade, que não pode ficar à mercê de um indivíduo com
periculosidade e com uma potencialidade de cometer novos delitos”. Segundo ele,
os hospitais de custódia, além de tratamento, servem também “para salvaguarda
social”.
O presidente do Cremesp, Mauro
Aranha, sugere que os hospitais de custódia teriam mais eficácia se estivessem
submetidos à Secretaria Estadual de Saúde e não à Secretaria de Administração
Penitenciária (SAP), como é atualmente. “O Conselho de Medicina, assim como
outras instituições que regulam a saúde, não tem eficácia em conseguir que isso
[modelo de tratamento] se transforme, justamente, porque os hospitais de
custódia estão na jurisdição da SAP e não dentro da Secretaria da Saúde”.
Para Aranha, sob comando da
Saúde, as instituições estariam mais próximas de oferecer tratamento
interdisciplinar (psiquiatria, psicologia, assistência social), com foco na
reinserção social.
A psicóloga e ativista na luta
antimanicomial, Marília Fernandez, é contra tratamentos que envolvam
confinamento. Segundo ela, o melhor encaminhamento para presos com esses
transtornos são os centros de Atenção Psicossocial (Caps), unidades do Sistema
Único de Saúde (SUS) em que o tratamento é ambulatorial.
“Essas pessoas precisam ser
tratadas enquanto uma questão psíquica, enquanto uma questão de álcool e outras
drogas, com redução de danos. Militamos pela redução de danos, pelo tratamento
em liberdade, porque, se essas pessoas têm transtorno mental, elas têm direito
de ser cuidadas humanamente”, disse.
Edição: Carolina
Pimentel