'Se for
negro, não entra': Polícia italiana impede refugiados de embarcar em trem para
Alemanha
Janaina Cesar | enviada especial a Bolzano (Itália) - 26/07/2015 - 08h00
Vídeo: Em estação de Bolzano, na fronteira com a Áustria, autoridades
exigem documentação apenas de imigrantes africanos; brancos não são parados
Em Bolzano, cidade na Itália que fica na fronteira
austríaca, refugiados negros são impedidos de embarcar nos trens que partem em
direção a Innsbruck, na Áustria, e Munique, na Alemanha. A polícia bloqueia as
portas dos vagões: se o passageiro for branco, a passagem é permitida, se for
negro, pedem pelo passaporte. Como nenhum refugiado possui a documentação, são
impedidos de entrar. As polícias italiana, austríaca e alemã trabalham em
estreita colaboração. A força trilateral, como é conhecida, nasceu em 2002 com
o objetivo de previnir assaltos em viagens internacionais, mas hoje impede que
refugiados deixem a Itália.
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Janaina
Cesar/Opera Mundi
Policial italiano: 'Se for negro, não entra . E se já está dentro deve ser
controlado porque é quase certo que não tem documento'
Todos os dias, por volta das 9h da manhã, cerca de
cem refugiados chegam à estação de Bolzano, ponto de acesso para ir à Alemanha
e aos países nórdicos. No dia 29 de junho, uma segunda-feira, 80 desceram do
trem noturno de Roma. A maioria vem de Eritreia, Sudão e Síria. Escapam da
guerra, da fome e da miséria. Para conseguir chegar até a Itália, enfrentaram a
morte de perto, atravessando o mar Mediterrâneo, que todos
os anos faz centenas de vítimas.
Aisha, uma jovem mãe eritreia que viaja com a filha
de 2 anos, conta que escapou de seu país por causa da perseguição religiosa.
Ela quer ir para Munique, diz ter amigos lá. “Não quero ficar na Itália. Tenho
amigos na Alemanha que estão me esperando e vão me ajudar quando eu
chegar", conta.
Para quem está há cinco meses viajando, os 280
quilômetros que separam Bolzano de Munique representam pouco — mas são
intermináveis. Durante os dez minutos em que o trem permanece parado para o
embarque dos passageiros, Aisha e os outros observam os “brancos” entrarem sem
problemas e se entreolham tentando entender o que está acontecendo. Mesmo
mostrando a passagem de 69 euros de Bolzano a Munique, os policiais não os
deixam entrar. Até aquele momento ninguém lhes explicou nada. Os policiais,
aqueles que se dão ao trabalho de responder, gastam somente uma palavra:
"passaporte". Sem mais.
Pele negra
Segundo declarou um policial italiano que pediu
para ficar no anonimato, a cor da pele identifica quem são os refugiados sem
documentos. “Se for negro, não entra . E se já está dentro [do vagão] deve ser
controlado porque é quase certo que não tem documento”, diz o oficial,
relatando qual foi a ordem recebida de seus superiores. “Sei que não é correto,
mas é o modo mais fácil de identificá-los. Sabemos que nenhum deles possui
visto ou passaporte e por isso não os deixamos entrar no trem internacional.”
O policial italiano diz ainda que nos trens
regionais que partem do sul em direção à fronteira austríaca, o controle não é
realizado. “Se o sistema de controle funcionasse, eles [os refugiados] nem
partiriam do sul [onde ficam os centros de acolhimento]. Nós da polícia de
Bolzano temos que enfrentar esse problema sozinhos”, afirma.
Ainda que
seja vedado esse tipo de auxílio pela legislação italiana — segundo a Lei nº
189, de 2002, ajudar um cidadão a entrar ou sair ilegalmente do país constitui
crime de favorecimento à 'imigração clandestina' — alguns cidadãos sensíveis a
situação dos refugiados, informam e até desenham atrás de passagens não usadas,
o percurso que devem fazer para chegar até Munique. Praticamente, devem ir até
Brennero, outra cidade italiana de fronteira, pegar o trem regional austríaco
até Innsbruck e, chegando lá, pegar o regional alemão para Munique. Tudo isso
torcendo para que a polícia local não os peguem e mandem de volta à Itália.
Somente em 2014, a Áustria devolveu cerca de 5.000
refugiados aos italianos. Isso, pois o Tratado de Dublin obriga que o pedido de
asilo seja feito no primeiro país onde a pessoa é identificada. No entanto, das
6.000 identificações realizadas ano passado pelo polícia de Bolzano, ninguém
retornou para formalizar o pedido de asilo.
Voluntários
Segundo Manoel, um dos voluntários que ajuda no
acolhimento dos refugiados na estação de Bolzano, “alguns deles chegam aqui
pensando que já estão na Alemanha, não sabem que precisam de documento e visto
para entrar naquele país”. É fácil se enganar, porque em Bolzano tudo é
bilíngue (italiano-alemão), da placa na estação aos anúncios nos alto falantes.
“Explicamos que sem documento não podem pegar o trem internacional e os
orientamos a irem com um trem regional à Brennero, uma cidade que fica na
fronteira com a Áustria”, diz.
“Na medida do possível, nós os orientamos, mas às
vezes a comunicação é muito difícil”, diz Luca de Marchi, também voluntário.
“Quando chegam aqui, nós os levamos a uma sala que colocaram [na estação de
Bolzano] à nossa disposição, fornecemos sacolinhas com alimentos, além de
roupas e sapatos e assistência humanitária. Queremos que essas pessoas, nas
poucas horas em que estão aqui, se sintam um pouquinho em casa. Já enfrentaram
uma viagem alucinante e queremos oferecer um pouco de tranquilidade e
serenidade.”
De Marchi confirma que o problema da discriminação
existe, mas, segundo ele, é uma coisa pessoal. “Não se pode generalizar e dizer
que a polícia é racista, nós temos um ótimo relacionamento com a força de
ordem. Não acho que a questão principal seja a cor da pele. O problema
realmente é a falta de documentos”, diz. Para ele, a melhor forma para
contrastar a questão dos refugiados, “é trabalhar em silêncio, sem criar
atritos”.
Rumo à
Áustria
Aisha e um grupo de 60 refugiados decidiram escutar
os conselhos de quem se arriscou com a lei italiana e resolveram embarcar para
Brennero. Os outros preferiram ficar em Bolzano, para tentar embarcar no
próximo trem internacional direto à Innsbruck e Munique — e tentar a sorte de
topar com um policial que faça de conta que não os viu embarcar. Segundo Marco,
isso já aconteceu, mas é coisa rara.
Uma hora e meia de viagem até Brennero com o trem
regional italiano. Mais 13,50 euros de passagem. A bordo reina o silêncio.
Alguns aproveitam para dormir, enquanto, no fundo do vagão, uma mãe amamenta
seu filho. O trem para. Ponto de chegada. Da estação de Brennero se vê a
fronteira com a Áustria. A estação é vazia. Nada de polícia italiana, alemã ou
austríaca. Quando os policiais estão nas imediações, alguns atravessam a fronteira
a pé, pelas trilhas paralelas à estrada principal. Mas desta vez não.
Essa brecha lhes dá tempo para pedir informação a
um jovem que chegou na estação. O trem regional austríaco está ali parado e
eles não podem perder a ocasião. O jovem, na maior paciência, os ajuda a
comprar as passagens, uma a uma. Às 15h, parte o trem e em meia hora chegam
Innsbruck. Aisha está feliz e deixa escapar um sorriso.
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