quinta-feira, 17 de março de 2016

Lamentável, lamentável



O agressor dorme no homem comum

Publicado há 1 dia - em 16 de março de 2016 » Atualizado às 17:09
Categoria » Violência contra Mulher
 primeira parte


Nosso repórter foi ao único grupo reflexivo para homens enquadrados pela Lei Maria da Penha existente na capital paulista; ele esperava ver monstros, mas viu homens constrangedoramente comuns

Por Ciro Barros Do A Publica

Em silêncio, espero a chegada do grupo junto dos psicólogos Tales Furtado Mistura e José Luiz Querido. Na salinha de cor creme, quase só cabem a mesa, as cadeiras, um quadro branco e uma estante. “Acho que hoje não vai ter muita gente não”, eles comentam enquanto a chuva caía naquela segunda-feira estranhamente fria para o começo de ano em São Paulo.

Esse seria o primeiro de três encontros de grupos reflexivos para homens enquadrados na Lei Maria da Penha que eu pude presenciar. Eles se reúnem toda semana na sede do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, um casarão vermelho situado numa rua pacata próxima ao largo da Batata, zona oeste de São Paulo. Uma equipe de psicólogos do coletivo oferece esse serviço de forma voluntária, e os encontros são gratuitos.

A casa do coletivo é o único espaço que acolhe grupos desse tipo na capital paulista. O outro espaço que sediava encontros como esse era a Academia de Polícia Civil do Estado de São Paulo (Acadepol), mas, segundo a Pública apurou, o curso está suspenso. Os relatos de quem foi a esse grupo dão conta de que a coisa andava mais à base da ameaça do que como uma reflexão conjunta legítima, como acontece na casa.

Os que participam dos grupos são homens enquadrados legalmente como agressores (não necessariamente culpados), para quem foi determinado, conforme o artigo 45 da Lei Maria da Penha, o “comparecimento obrigatório a programas de recuperação e reeducação” mesmo antes do fim do processo. Frequentar esse tipo de grupo não isenta os supostos agressores de responder a seus processos, mas a assiduidade é considerada pelos juízes na hora de bater o martelo e determinar as penas. A presença de mulheres é proibida nas sessões, e eles devem ir a no mínimo 16 encontros.

A lei prevê também, para a efetiva realização de programas como esse, a criação de “centros de educação e de reabilitação para os agressores” por todos os entes federativos, conforme o artigo 35. A realidade, porém, é que, em todo o país, existem pouquíssimos espaços assim.

Aos poucos, as cadeiras vão sendo preenchidas por homens bem diferentes uns dos outros. Nas seis horas que passei na salinha durante os três encontros, quebrei todos os meus preconceitos. Esperava encontrar monstros agressores, sádicos contumazes, malfeitores violentos próximos ao “estereótipo Da tena”. Encontrei homens constrangedoramente comuns, uma amostra masculina fidedigna de toda a pirâmide social brasileira como raramente vi. O “homem brasileiro” estava ali em todas as suas nuances.

Estiveram comigo homens altos, baixos, magros, gordos, brancos, pardos, negros, ricos, pobres, barbudos e barbeados de 20 a 60 anos. De profissões igualmente diversas como empresários, músicos, representantes comerciais, zeladores, autônomos, vendedores, psicólogos, engenheiros. Também havia os desempregados e aposentados.
“Acho que seu enfoque não tá muito correto”

Quase todos vão chegando atrasados e dando as mesmas justificativas: a chuva, o trânsito caótico de São Paulo, o trabalho que os segurou mais do que gostariam. Alguns não falam nada, como um rapaz com nariz de lutador que chegou acompanhado do pai.
Ao atingir uns 90% do quórum esperado para o primeiro dia, os psicólogos pedem que eu me apresente. “Boa tarde, o meu nome é Ciro Barros, sou repórter da Agência Pública. Estamos fazendo uma matéria sobre violência contra a mulher e queríamos ver de perto como funcionam esses grupos reflexivos previstos na lei.” Desde a primeira frase, notei todos os olhares na minha direção, um estranho naquele ninho de reflexão. A única condição era não identificar nenhum interlocutor.

Os psicólogos perguntam se ninguém se opõe à minha presença e ninguém responde. Um senhor de fala pausada e cabelos brancos já bem “desmatados” quebra o silêncio. “Eu só acho que o seu enfoque não tá muito correto. Você falou em violência contra a mulher, mas é preciso averiguar quando essa violência é contra o homem também. Essa lei existe para proteger todas as mulheres e, a partir do momento em que elas denunciam, você vira réu. É uma lei esdrúxula, mal formulada, feita na base de um toma lá da cá, quem sabe na base do Mensalão”, sentencia.

A estranha contestação desata um chororô sem fim contra a Lei Maria da Penha. Eles reclamam de que a lei protege demais as mulheres, nivela os homens por baixo, permite injustiças. Um outro senhor grisalho bate o tempo todo na mesa e pede pelo menos umas três vezes para eu anotar com precisão o que ele diz. “Escreve aí. Só com essas leis, não vai resolver o problema. Pode escrever. Vai morrer cada vez mais mulher. Eu moro no centro, vejo todo dia o que acontece naquelas pensões de lá. Elas vão continuar apanhando.”

Os protestos soam como negação, resistência desses homens em admitir seus erros diante do grupo (e da própria consciência). Faz parte dessa “masculinidade tóxica” assumir a postura do machão competitivo que nunca erra. Tales Furtado Mistura, um dos psicólogos que orienta semanalmente os grupos, descreve em sua tese de mestrado a respeito desse tema os estágios emocionais mais comuns entre os homens que frequentam os grupos reflexivos: vergonha, punição, vitimização, revolta, perplexidade “e, mesmo, estranhamento em relação aos outros participantes do grupo”, ele escreve.

O arco descrito por Tales se encaixa nas reações que eu observei no primeiro dia. Por trás das falas irônicas e exaltadas transparece uma vergonha tremenda de estar ali, um deslocamento da culpa para a vitimização – é a legislação que é cruel, injusta. A revolta e a perplexidade aparecem em falas como: “Eu nem sabia que isso dava cana”; “O cara rouba bilhões da Petrobras e não vai preso e eu tô aqui”.

A casca vai se quebrando e, quando reparo, eles já estão à vontade para contar suas versões das histórias de agressão que os levaram ali. O músico alternativo diz que começou a brigar “por questões particulares”. “Aí ela veio pra cima de mim e eu agarrei ela. Só que eu peguei firme. Sou baixista, né?”, diz. Outro representante da “ala de injustiçados”, um rapaz de cabelo descolorido, alega que estava na casa dos pais com o filho quando a ex-esposa entrou e começou a agredi-lo, tentando tomar o filho dele. Mais de um afirma que a agressão foi mútua. O pai do nariz de lutador conta que ele havia terminado com a namorada e a ameaçado de agressão nas redes sociais. “Mas só isso?”, ouço alguns protestos.
 

quinta-feira, 10 de março de 2016

Orgulho e respeito, Leci Brandão



Leci Brandão: A força da mulher na luta contra o racismo

Publicado há 1 dia - em 9 de março de 2016 » Atualizado às 15:20
Categoria » Mulher Negra



 
Neste Dia Internacional da Mulher, quero relatar uma experiência que tive há muitos anos quando fui procurar meu primeiro emprego. Era 1966, recém-formada pelo Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Era hora de ter carteira assinada. Desavisada sobre as armadilhas do racismo institucional, bati de porta em porta com um currículo embaixo do braço seguindo os anúncios que exigiam muitos requisitos, inclusive a tal “boa aparência”.
Por Leci Brandão Do Vermelho


A carteira assinada só veio depois que relatei a minha busca a uma amiga que me explicou o que a tal “boa aparência” significava. Ela disse que eu nunca preencheria nenhuma vaga se não fosse por meio de uma indicação ou algo parecido.

Hoje, não vemos mais anúncios pedindo a “boa aparência”, mas isso não quer dizer que a vida ficou muito mais fácil para as mulheres negras. Hoje, enquanto deputada estadual, recebo denúncias de mulheres que não ascendem em suas carreiras, principalmente no mundo corporativo, por causa de seu cabelo crespo, ou que sofrem assédio para que se adaptem a um padrão estético considerado aceitável.

O racismo é uma forma de opressão perversa e cruel. Ele garante a manutenção de estruturas repressivas e autorizam atrocidades como o genocídio da juventude negra e a exploração do nosso trabalho em troca dos salários mais baixos e nas piores condições.
Neste 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, data de luta e reflexão, não podemos ignorar a desigualdade racial e de gênero que atinge a mulher negra, pois, se nossa luta por emancipação é internacional, também é certo que ela deve considerar a questão racial. Precisamos, sim, de um feminismo negro. A boa nova é que são evidentes os sinais de crescimento desse feminismo no Brasil. Nas ruas já se fazem notar os cabelos crespos ou trançados e turbantes coloridos. Para os que pensam que essa mudança estética é algo supérfluo, um recado: não se trata apenas de cabelo. Estamos falando de protagonismo, de poder e de política.

Estamos colhendo os frutos de décadas de luta do movimento negro somadas às políticas públicas inclusivas iniciadas em 2002, com a eleição de Lula, como a instituição do ProUni (Programa Universidade para Todos) e das cotas para negros e indígenas nas universidades. Porém, continuamos três degraus abaixo na escada da igualdade racial e de gênero. Para citar apenas um exemplo dessa disparidade, 61,6% das 6,5 milhões de mulheres que exercem o trabalho doméstico remunerado no Brasil são negras, pobres e com baixa escolaridade, a maioria sem vínculo trabalhista formal; por outro lado, na Câmara dos Deputados, as mulheres negras são pouco mais de 2%.
O racismo é mantenedor de estruturas de poder e não podemos desconsiderá-lo em nenhum momento.

Hoje temos algumas leis que nos amparam e um Estatuto da Igualdade Racial, mas a nossa maior conquista hoje é o nosso fortalecimento coletivo: “Uma sobe e puxa a outra”.

É puxando umas às outras que vamos ocupar os espaços de poder. Não temos como mudar um Congresso reacionário, que ataca as mulheres, principalmente as negras, se não participarmos da política, se não elegermos cada vez mais mulheres que falem e defendam as causas que realmente farão uma diferença positiva em nossas vidas.

Estamos vivendo a ameaça de uma democracia sufocada. Reelegemos a presidenta Dilma e é fundamental que as comemorações deste 8 de Março sejam marcadas pela defesa da democracia e contra o retrocesso. Hoje, esta é a nossa pauta mais urgente. Temos que garantir essa democracia, pois, sem ela, nossas lutas não vão avançar.
2016 é ano eleitoral e a pergunta que faço é: quantas mulheres pretendemos eleger nas próximas eleições? Quantas mulheres negras?

Eu conheço as dificuldades das mulheres, principalmente, das mulheres das pontas, das favelas, das periferias, das ocupações e dos quilombos. Conheço de perto o machismo e o racismo porque sempre lidei com eles. Por isso mesmo sei que se não estivermos no Poder, de verdade, nossas lutas serão ingratas.

Se não colocarmos mais mulheres negras e das periferias nos representando nas câmaras municipais, prefeituras, governos estaduais, assembleias legislativas, na Câmara Federal e no Senado, não vamos avançar.

Nossa luta por emancipação e mais desenvolvimento continua atual, mas não haverá mudanças se a luta das mulheres também não for pela superação do racismo.
Nenhum direito a menos!

Nenhum passo atrás!
Viva o 8 de Março!