O
agressor dorme no homem comum
Publicado
há 1 dia - em 16 de março de 2016 » Atualizado às 17:09
Categoria » Violência contra Mulher
Categoria » Violência contra Mulher
primeira parte
Nosso repórter foi ao único grupo reflexivo para
homens enquadrados pela Lei Maria da Penha existente na capital paulista;
ele esperava ver monstros, mas viu homens constrangedoramente comuns
Por Ciro
Barros Do A Publica
Em silêncio, espero a chegada do
grupo junto dos psicólogos Tales Furtado Mistura e José Luiz Querido. Na
salinha de cor creme, quase só cabem a mesa, as cadeiras, um quadro branco e
uma estante. “Acho que hoje não vai ter muita gente não”, eles comentam enquanto
a chuva caía naquela segunda-feira estranhamente fria para o começo de ano em
São Paulo.
Esse seria o primeiro de três
encontros de grupos reflexivos para homens enquadrados na Lei Maria da Penha
que eu pude presenciar. Eles se reúnem toda semana na sede do Coletivo Feminista
Sexualidade
e Saúde, um casarão vermelho situado numa rua pacata próxima ao largo da
Batata, zona oeste de São Paulo. Uma equipe de psicólogos do coletivo oferece
esse serviço de forma voluntária, e os encontros são gratuitos.
A casa do coletivo é o único
espaço que acolhe grupos desse tipo na capital paulista. O outro espaço que
sediava encontros como esse era a Academia de Polícia Civil do Estado de São
Paulo (Acadepol), mas, segundo a Pública apurou, o curso está suspenso.
Os relatos de quem foi a esse grupo dão conta de que a coisa andava mais à base
da ameaça do que como uma reflexão conjunta legítima, como acontece na casa.
Os que participam dos grupos são
homens enquadrados legalmente como agressores (não necessariamente culpados),
para quem foi determinado, conforme o artigo 45 da Lei Maria da Penha, o
“comparecimento obrigatório a programas de recuperação e reeducação” mesmo
antes do fim do processo. Frequentar esse tipo de grupo não isenta os supostos
agressores de responder a seus processos, mas a assiduidade é considerada pelos
juízes na hora de bater o martelo e determinar as penas. A presença de mulheres
é proibida nas sessões, e eles devem ir a no mínimo 16 encontros.
A lei prevê também, para a
efetiva realização de programas como esse, a criação de “centros de educação e
de reabilitação para os agressores” por todos os entes federativos, conforme o
artigo 35. A realidade, porém, é que, em todo o país, existem pouquíssimos
espaços assim.
Aos poucos, as cadeiras vão sendo
preenchidas por homens bem diferentes uns dos outros. Nas seis horas que passei
na salinha durante os três encontros, quebrei todos os meus preconceitos.
Esperava encontrar monstros agressores, sádicos contumazes, malfeitores
violentos próximos ao “estereótipo Da tena”. Encontrei homens
constrangedoramente comuns, uma amostra masculina fidedigna de toda a pirâmide
social brasileira como raramente vi. O “homem brasileiro” estava ali em todas
as suas nuances.
Estiveram comigo homens altos,
baixos, magros, gordos, brancos, pardos, negros, ricos, pobres, barbudos e
barbeados de 20 a 60 anos. De profissões igualmente diversas como empresários,
músicos, representantes comerciais, zeladores, autônomos, vendedores,
psicólogos, engenheiros. Também havia os desempregados e aposentados.
“Acho que seu enfoque não tá
muito correto”
Quase todos vão chegando
atrasados e dando as mesmas justificativas: a chuva, o trânsito caótico de São
Paulo, o trabalho que os segurou mais do que gostariam. Alguns não falam nada,
como um rapaz com nariz de lutador que chegou acompanhado do pai.
Ao atingir uns 90% do quórum
esperado para o primeiro dia, os psicólogos pedem que eu me apresente. “Boa
tarde, o meu nome é Ciro Barros, sou repórter da Agência Pública.
Estamos fazendo uma matéria sobre violência contra a mulher e queríamos ver de
perto como funcionam esses grupos reflexivos previstos na lei.” Desde a
primeira frase, notei todos os olhares na minha direção, um estranho naquele
ninho de reflexão. A única condição era não identificar nenhum interlocutor.
Os psicólogos perguntam se
ninguém se opõe à minha presença e ninguém responde. Um senhor de fala pausada
e cabelos brancos já bem “desmatados” quebra o silêncio. “Eu só acho que o seu
enfoque não tá muito correto. Você falou em violência contra a mulher, mas é
preciso averiguar quando essa violência é contra o homem também. Essa lei
existe para proteger todas as mulheres e, a partir do momento em que elas
denunciam, você vira réu. É uma lei esdrúxula, mal formulada, feita na base de
um toma lá da cá, quem sabe na base do Mensalão”, sentencia.
A estranha contestação desata um
chororô sem fim contra a Lei Maria da Penha. Eles reclamam de que a lei protege
demais as mulheres, nivela os homens por baixo, permite injustiças. Um outro
senhor grisalho bate o tempo todo na mesa e pede pelo menos umas três vezes
para eu anotar com precisão o que ele diz. “Escreve aí. Só com essas leis, não
vai resolver o problema. Pode escrever. Vai morrer cada vez mais mulher. Eu
moro no centro, vejo todo dia o que acontece naquelas pensões de lá. Elas vão
continuar apanhando.”
Os protestos soam como negação,
resistência desses homens em admitir seus erros diante do grupo (e da própria
consciência). Faz parte dessa “masculinidade tóxica” assumir a postura do
machão competitivo que nunca erra. Tales Furtado Mistura, um dos psicólogos que
orienta semanalmente os grupos, descreve em sua tese de mestrado a respeito
desse tema os estágios emocionais mais comuns entre os homens que frequentam os
grupos reflexivos: vergonha, punição, vitimização, revolta, perplexidade “e,
mesmo, estranhamento em relação aos outros participantes do grupo”, ele
escreve.
O arco descrito por Tales se
encaixa nas reações que eu observei no primeiro dia. Por trás das falas
irônicas e exaltadas transparece uma vergonha tremenda de estar ali, um
deslocamento da culpa para a vitimização – é a legislação que é cruel,
injusta. A revolta e a perplexidade aparecem em falas como: “Eu nem sabia que
isso dava cana”; “O cara rouba bilhões da Petrobras e não vai preso e eu tô
aqui”.
A casca vai se quebrando e,
quando reparo, eles já estão à vontade para contar suas versões das histórias
de agressão que os levaram ali. O músico alternativo diz que começou a brigar
“por questões particulares”. “Aí ela veio pra cima de mim e eu agarrei ela. Só
que eu peguei firme. Sou baixista, né?”, diz. Outro representante da “ala de
injustiçados”, um rapaz de cabelo descolorido, alega que estava na casa dos
pais com o filho quando a ex-esposa entrou e começou a agredi-lo, tentando
tomar o filho dele. Mais de um afirma que a agressão foi mútua. O pai do nariz
de lutador conta que ele havia terminado com a namorada e a ameaçado de
agressão nas redes sociais. “Mas só isso?”, ouço alguns protestos.
Leia a matéria completa em: O agressor dorme no homem comum - Geledés http://www.geledes.org.br/o-agressor-dorme-no-homem-comum/#ixzz43CWYbZoo
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